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domingo, 20 de maio de 2012

Justiça Midiática



Liberdade de expressão não é um direito absoluto. Quando a imprensa faz uma campanha pela condenação do réu, os juízes têm o dever de intervir para assegurar o direito do acusado a ter um julgamento justo. É preciso tomar providências para evitar que pessoas que ainda são consideradas inocentes acabem tratadas como culpadas pelos jornalistas.

Viola-se portanto o  princípio da presunção de inocência, se der à pessoa que ainda é inocente um tratamento de culpada. Há uma colisão de direitos da imprensa em reportar fatos livremente, com o direito da pessoa de não ter sua reputação ofendida gratuitamente.
É claro. Nós não estamos mais sob a ditadura, vivemos em um regime democrático. Há outros direitos que podem colidir com a liberdade de expressão e que também merecem proteção constitucional. A forma como a mídia retrata um fato criminoso, a prisão de um suspeito, a apuração feita pela Polícia, pode violar honra do acusado e privá-lo de um julgamento justo. É como se não houvesse o processo, já que o julgamento não vai se pautar apenas nas provas que são produzidas nos autos.


A pessoa não deve ser tratada como culpada antes que haja uma sentença transitada em julgado. Esse é o princípio da presunção de inocência. O ônus da prova é de quem acusa. Ao tratar uma pessoa que está sendo processada criminalmente, deve-se  impor  a ela o menor constrangimento possível. Uma das aplicações desse princípio, no Judiciário, é não impor a prisão sem que haja estrita necessidade, porque a pessoa ainda é inocente. A imprensa tem liberdade para cobrir julgamentos criminais, acompanhar o funcionamento da Polícia e da Justiça. Só que a imprensa reporta fatos criminais com o discurso de que os crimes têm que ser imediatamente punidos, de que deve aumentar a repressão, pois há muita impunidade.

Na imprensa se tem a velha máxima que toda forma de restrição da liberdade de expressão é considerada ditatorial. A imprensa, geralmente, tem uma resistência enorme não apenas a eventuais medidas do Judiciário de proibição de veiculação de reportagens, mas também quando são condenados a pagar indenização, porque isso também é considerado um atentado à liberdade de expressão. Reagem, ainda, ao direito de resposta. Os jornalistas consideram restrição à liberdade editorial a obrigação de publicar uma resposta.
Mas é evidente que direito de resposta nem sempre é bom para o cliente porque acaba prejudicando em veiculações abusivas na imprensa. Como as coisas demoram no Judiciário, na hora em que a pessoa atingida por uma reportagem prejudicial consegue o direito de resposta, o assunto já esfriou. E há outro problema. Os jornalistas colocam a resposta em letras usadas para publicidade. Ao colocar como informe publicitário já está diminuindo a autenticidade, qualidade, autoridade daquela resposta.

Não é toda notícia sobre um processo criminal ou um inquérito que deve ser considerado uma campanha de mídia contra o réu. Têm que estar presentes alguns critérios. Primeiro, avaliar o conteúdo das notícias e ver se as manifestações são predominantemente opinativas e sugerem a culpa da pessoa investigada. Segundo, intensidade da campanha, ou seja, sucessivas inserções por diferentes veículos que se estendem por um determinado período de tempo. Se há uma notícia sobre uma operação da Polícia Federal, por mais que seja prejudicial, não é suficiente para caracterizar uma campanha. Também tem que estar presente um risco potencial de que a campanha de mídia vai prejudicar o julgamento.

O juizo precisa tomar algumas providências para ser menos permeável a uma campanha de mídia. Os jurados são mais permeáveis, no sentido de que não precisam motivar suas decisões. Não há como saber o caminho que os jurados percorreram para chegar à decisão. Como medidas preventivas, sugiro postergar o julgamento ou modificar o foro. Suponhamos que em uma cidade do interior haja campanha aberta contra determinado réu. A Justiça brasileira permite que o réu seja processado na capital. Mas com a globalização, dependendo do grau da campanha contra o réu, o desaforamento já não é tão eficaz. No caso do Tribunal do Júri, há a possibilidade de seqüestros de jurados. Mas isso também não impediria que os jurados fossem influenciados em uma campanha anterior. Também há a possibilidade de adiar um pouco o julgamento até que não haja uma campanha tão fort e. São medidas que podem minimizar o problema.

Também sugiro algumas medidas restritivas. A primeira é a ampliação do direito de resposta, de forma a permitir um espaço maior ao acusado para dar outra versão dos fatos no jornal. Dependendo da intensidade da campanha, o direito de resposta nem é tão eficaz. Ás vezes, o acusado está tão desmoralizado que suas afirmações já não são consideradas ou pioram sua situação. Um caso claro é o da Suzane Richthofen. Outra medida que, evidentemente, cerceia a liberdade de expressão, é a restrição da publicidade do julgamento.

A Constituição diz que o julgamento deve ser público. Mas há situações em que o juiz pode decretar o segredo de Justiça e proibir o acesso a determinadas informações. Isso pode não ser tão eficiente. Apesar de os processos estarem em segredo, muitas vezes, as informações vazam e não tem como impor ao jornalista que ele diga quem é sua fonte. Também são possíveis punições posteriores à publicação, através de indenização para a pessoa que foi prejudicada ou a punição criminal dos jornalistas responsáveis. Outra medida refere-se à restrição de provas ilícitas.
A forma como o jornalista investigativo constrói a verdade é livre. O jornalista não está obrigado a respeitar as regras de produções de provas como acontece no processo judicial. Às vezes, as provas que a imprensa obtém são ilícitas, como uma gravação ambiental não autorizada, documentos sigilosos que chegaram às mãos do jornalista.

O Supremo Tribunal Federal tolera a gravação ambiental quando é a vítima que a utiliza. Por exemplo, a dona de uma loja está sendo vítima de extorsão. Todo dia, um fiscal cobra um dinheiro para não autuá-la. Certo dia, ela grava essa conversa com o fiscal. Isso é lícito. Se alguém comete um crime em um lugar que tem uma câmera de segurança, é lógico que o vídeo é totalmente lícito. Situação diferente é estar em um ambiente de privacidade, enganando uma pessoa e a fazendo confessar um crime com uma câmera escondida, depois expor a gravação e pretender que aquilo seja prova no processo.

O juizo não pode admitir esse tipo de gravação, ainda que as pessoas tenham certeza absoluta de que a pessoa cometeu o crime. Uma das medidas possíveis seria a mais sensível: a proibição de veiculação de mensagens. Isso tem um caráter de censura. Mas, em tese, é possível como medida judicial em situações excepcionais. O constitucionalista Luís Roberto Barroso afirma que cada geração se assusta com assombrações diferentes. E que, para a geração dele, a grande ameaça era a censura. As novas gerações, que não viveram e não temem a censura. As pessoas só começam a pensar nisso quando são atingidas, eventualmente, por alguma notícia. Concordo que as gerações que viveram sobre a ditadura militar acabam se assustando com esse tipo de fantasma. Mas não existe mais a censura institucional. O Luís Roberto Barroso escreve no prefácio do meu livro que pode ser que ele não concorde com todas as soluções que propus. Mas ele diz também que não há valores em uma democracia que estejam acima do debate democrático.

Não se pode simplesmente defender a liberdade de expressão sem justificar porque ela é importante. O Luís Roberto Barroso diz que a liberdade de expressão já não pode se proteger apenas pela invocação de velhos fantasmas, precisará legitimar-se e afirmar-se por méritos e virtudes próprios, conquistando a proteção e reconhecimento por parte das sociedades. O juizo precisa estar aberto à crítica, a mesma coisa ocorre no Judiciário. O juizo tem que estar aberto à crítica pública o tempo todo. É um agente público, não é eleito pelo povo, logo, sua legitimação vem das decisões, da transparência como conduz o processo. Quanto mais transparência tiver no funcionamento da Justiça, na atuação do juiz, mais informada a população vai estar.
Não basta a notícia ser inverídica e prejudicial, tem que caracterizar o dolo do jornalista ou uma conduta temerária, cabendo o ônus da prova à própria pessoa atingida. Com a instantaneidade, o tempo da notícia ficou mais acelerado. Para a imprensa, o bom é divulgar a notícia rapidamente, mesmo que seja parcial ou falha. A falha se corrige depois. Começa aí o ponto de tensão entre a Justiça e a imprensa. A Justiça trabalha com uma concepção completamente contrária, ou ao menos deveria. O amadurecimento da construção da verdade, o contraditório no processo demanda tempo. Não pode, realmente, a cena judiciária transformar-se em espetáculo midiático. 

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